Preparando café, cada dia.

O Clube Barista tem o objetivo de difundir as boas práticas do barismo e o entusiasmo em cada xícara.

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Helga Andrade, Barista.

Déjà vu pas (ou O Presente na Borra de um Espresso)


Outra vez se sentou para um espresso. Quase sempre curto, quase sempre meio escondido, porque o prazer de estar só na multidão dependia de um estado de relativo anonimato.

Estar lá era revisitar um ponto específico na história dela, um ponto sem tempo. Um ponto de subconsciência sensorial, quando ela se permitia esquecer o protocolo e aceitar, como se fosse a sua escolha, um biscoitinho açucarado nos intervalos entre os goles de café.

A porcelana é negra por fora e clara por dentro, e o último gole anuncia um pouco de pó. Ela pensa seriamente em tombar a xícara sobre o pires e ensaiar a leitura da borra, mas um ruído de fervura da máquina de café traz a moça de volta à con-ciência. “Alguém errou o ponto do leite.”

Ontem um amigo lhe confidenciou que só conhece formas convencionais de fazer as coisas: ganhar dinheiro, morar, vestir, viver, por vezes. Ela lembra que só sabe fazer as coisas de forma não convencional, mergulha profundo na própria mente e se diverte assistindo a lembrança de uma menina cujo nome esqueceu, mas sabe que viu hoje cedo, não sabe onde e nem por que não lhe disse ‘bom dia’. Provavelmente estava acontecendo alguma coisa importante, mas logo deixou de ser porque passou um moço com quem ela imaginou poder casar.

O último gole é frio. Ela gosta que seja assim, porque descobre outros sabores. O gole é frio, tem textura e lembrou torrada feita de pão doce. Ela tomba a xícara sobre o pires para secar a borra, e os três rapazinhos de avental apostam intimamente que aquela moça na mesa 20 escrevendo é um tanto louca. Ainda mais que ela usa lápis e o caderno tem capa marrom, combinando com as cadeiras.

Ficou meio copinho de água, que serviram com o espresso. Ela brinca mirando as unhas vermelhas nas últimas bolhas da água gasosa. O cabelo curto não cai mais sobre os olhos, as unhas cresceram e as pontas dos dedos ficaram marcadas pelo lápis, que ela não usava fazia tempos.

Ela lembra de ler o futuro na xícara e lembra em seguida que devia ter lido com mais atenção o livro que o amigo lhe havia comprado de presente na rodoviária. Talvez ela agora soubesse onde ele está, e por que ela veio parar na mesa 20, não na 17 nem na 23. Quando ela chegou havia só aquela senhora que pediu para trocarem o biscoito porque estava frio, mas agora entrou um rapaz de mochila que ficou olhando e sentou na mesa ao lado, ficando quase de frente. Mas ele usa um anel largo no anelar direito.

Ela respira aliviada, porque se tivesse lido o livro poderia saber o futuro e esquecer de pedir outro espresso. Prometeu a si mesma ler melhor os livros e evitar os últimos goles, para não cair na tentação de tombar mais xícaras negras.

Ele vai chegar logo, mas ela não está esperando por ele: ela fita as bolhas de água gasosa, calculando o risco de tombar o copo. Parecia mais seguro deixá-lo ali antes do último gole, mas segurança não fazia muito a cabeça dela. Tomou, de um gole só.

Ela fechou os olhos e imediatamente ele tombou os dele sobre ela. Ela sorriu, com os olhos que ele não via.


Texto: Helga Andrade
Imagens: Thiago Casavechia

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